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Coisas que aprendi em uma década de Canadá

Ressuscitamos este praticamente finado blog para uma reflexão comemorativa aos 10 anos de "Oh, Canada!"

Aprendi a tirar os sapatos, e como um hábito tão simples, se repetido por 10 anos se torna seu, de forma que eu não consigo mais entrar em casa nenhuma, em lugar nenhum sem tirar os sapatos... ou sem ao menos pensar que eu deveria estar tirando o sapato. Meus filhos acham que este eh o único jeito de viver, e pra mim, 10 anos aqui apagaram os 25 anos lá... verdade para os sapatos, e verdade para muitas outras coisinhas da vida.

Não consigo mais deixar carrinho de supermercado em qualquer lugar do estacionamento. E isso, não importa se esta frio, se esta -30, tempestade de neve ou se eu tenho duas crianças chorando comigo, não importa “se alguém esta sendo pago pra fazer isso”, eu simplesmente acho que eh minha obrigação botar o carrinho no lugar, e não deixar num cantinho, numa vaga de carro vazia, ou em algum lugar que possa atrapalhar alguém. As vezes me da raiva porque eu quero deixar! Mas não consigo... (Marcia, você é responsável por isso!)

Aprendi que se você quer escola pública de qualidade, saúde pública para todos (qualidade a questionar...), se quer ter casa sem portão nem grade você também tem que se contentar em dar metade do seu salário em imposto, pagar multa porque estava dirigindo a 43km/h em uma zona de 30km/h ou porque estava 2 min passado o tempo do seu estacionamento. Dá raiva (acho que aprendi a passar raiva), mas é assim, e não tem negociação. Mas também aprendi a não ser deslumbrada, e que saúde pública universal é PSF. Palmas pro PSF, todo mundo devia usar. Aqui todo mundo usa, não porque quer, mas porque não tem opção. Mas aprendi também que existe uma certa ilusão ao que se tem aqui, e que sim, aqui tem “jeitinho canadense”, tem  “QI= quem indica”,  tem gente que rouba dinheiro público que era pro hospital (vai preso, mas tem), tem gente fazendo coisa torta. Só que quem faz coisa torta não é bem visto.  Seja não trazer a sua própria xícara de café pra não ter que usar descartável em um uma reunião, seja indo de carro quando você podia ir a pé, seja chegando atrasado ou tentando “dar um jeitinho” – ninguém passa despercebido querendo fazer o politicamente incorreto. Acho que esta é uma diferença crucial.

Aprendi a viver com a saudade, e que ela nunca vai passar. Não aprendi a dizer que sou canadense, não importa onde eu vou, se me perguntam de onde eu sou, digo que sou brasileira, o que gera um monte de confusão.

Aprendi a viver com embalagens de tamanho monstruoso de papel higiênico, cereal e detergente, com outlets e compras nos estados unidos, mas ao mesmo tempo curtir a lojinha do bairro com produtos orgânicos,  o café perto da universidade com grãos selecionados, a lojinha de roupas vintage e o parquinho atrás de casa.

Aprendi a apreciar comidas e culturas de outros cantos como nunca antes, porque não é só a comida, mas também o contexto ao qual ela pertence, é de onde vem, quem fez, como veio parar aqui. Talvez minha avó japonesa, tenha tido um pouco mais dessa experiência no Brasil, quando chegou de navio e casamento marcado há uns muitos mais anos atrás, e deve ter cruzado com uns tantos outros imigrantes vindos de outros cantos para trabalhar como ela nas lavouras de café. Mas não acho que ela teve o privilégio de conhecer a cultura das pessoas ao seu redor, ocupada que só com seus 5 filhos pra criar. Eu tenho, mesmo ocupada que só com meus 2.

Aprendi a viver com frio, mas confesso que não aprendi a gostar do frio, como muitos me disseram quando eu cheguei. Até gosto de esquiar, mas acho insuportavelmente não prático ter que carregar toneladas de equipamento, camadas de roupa, meia, bota, cachecol, luva, óculos, saquinho pra esquentar a mão por dentro da luva... Aprendi que algumas coisas não mudam em você, mesmo que você mude tanto. Do tipo, sou preguiçosa, pronto acabou - Ainda acho mais lazer carregar biquíni, canga e chinelo e ficar tomando sol fazendo palavras-cruzadas do que sair pra brincar na neve.

Aprendi que as pessoas são, e sempre serão diferente do que eu sou. Que meus filhos, um híbrido de lá e cá, embora falem, leiam e conversem em português, nunca vão ser tanto como eu, e que tudo bem, eles são um mix de culturas, e representam isso sendo tolerantes, abertos à hábitos e ideias diferentes das suas, sensíveis a diferenças em todos os aspectos. Eles são crianças que não entendem as piadinhas maliciosas que escutam no Brasil, não sacam muito a coisa do rebolado e se estarrecem com crianças pedindo esmola nas ruas de São Paulo. Eles são crianças que comem vegetais crus em festa de aniversário, mas ainda assim amam brigadeiro, capazes de comparar a lenda do Maple com a lenda do saci-pererê, capazes de brincar de jogos de mão em um francês quase incompreensível aos ouvidos da mãe, e ao mesmo tempo traduzir tudo automaticamente, e querer aprender qual é o equivalente dessa brincadeira no Brasil.

Aprendi que viver sem empregada, babá, diarista não é o fim do mundo. Mas não vou dar uma de bem resolvida, não sou. Se pudesse neste instante eu teria uma. Pagaria FGTS, fundo de pensão, férias e sei lá mais o que, mas teria. Ter ajuda em casa não é imprescindível, faz marido aprender que ele não ajuda, mas colabora igualmente, faz filhos terem uma noção muito mais clara de que sim, é responsabilidade deles fazer as tarefas domésticas, mas faz também uma falta danada, e faz a vida um cadinho mais complicada. Mas ninguém morre por causa disso, uma década de sobrevivência me fizeram estranhar essa noção de serventia que a gente tem na Terrinha. Essa coisa de alguém pegar sua roupa suja e devolver lavada e passada, embora me pareça ainda desejável,  já me é um pouco estranha.

Aprendi que na distância a família são os amigos, e uma rede sólida de amigos é imprescindível à sobrevivência. Há que se ter amigos pra matar a saudade que não se mata, pra ir na padaria nova experimentar o pão de queijo e entender o quanto você precisava disso, pra ir buscar o filho na escola quando você se enrolou no trabalho, pra revezar no cuidado dos filhos pra você ter um tempo com o marido.  E há de se entender também que amigos feitos aqui, são amigos diferentes do que você tinha lá. Nada substitui uma amizade de infância, mas o coração vai se ajustando como pode, e você acha lugares pra acolher, tolerar, amar coisas que só se repara em amizades de adultos.

Aqui no Canadá aprendi a crescer. Virei gente grande, ou como disse a Mari num post aí, “adulteci” (adorei!).  Acho que isso tem mais a ver com ter vindo para cá na metade dos meus 20 e estar agora na metade dos meus 30, acho que é por aí na vida que isso acontece, independentemente de onde se esteja no mundo. Aprendi a ser mãe, e de uma maternidade tão diferente da que vejo e que seria se estivesse no Brasil. Aprendi a ser profissional, enverguei pra carreira acadêmica que ao bem da verdade nunca tinha considerado, e pouco a pouco fui vendo as minhas preocupações de antes do tipo “o que eu vou ser quando crescer” para “puts... e agora que eu sou isso, será que deveria ser outra coisa?”, ou de “será que eu vou ter filhos?” pra “o que meus filhos vão ser?”, e de vontades de mudar o mundo para alguns atos bem concretos nessa direção, sabendo que o mudo que se muda é um mundo bem limitado, mas que se muda de fato.

Aprendi a viver comparando (vide esse post), numa inquietude que acho que não tem concerto. Parece que não tem jeito de estar aqui sem estar pensando no que seria lá. Aprendi a chegar no Brasil e ao invés de querer ver todas as pessoas e ir em todos os lugares eu só quero ver poucas pessoas e poucos lugares (que geralmente envolvem lojas de sapato, praia e padarias) e apesar da delícia de entrar e sair de um lugar sem ter que trocar a roupa inteira (e sem ter que tirar os sapatos), de não ter que olhar a meteorologia antes de sair de casa e de ter suco de laranja, manga e goiaba frescos quando quiser, eu acho (veja bem que eu ainda só acho) que essa mudança não tem volta. Aprendi que aqui é o meu lugar. Ao menos por enquanto... até que eu aprenda alguma coisa nova.