Post que deveria ter sido publicado dia 09/05
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Há 4 anos troquei as Havaianas por botas impermeáveis com etiquetas que garantem sua resitência até -30 graus.
Depois de 4 anos, quase nada mais é igual.
Um tanto de coisas fazem parte do percurso normal da vida e acho que teriam acontecido lá ou cá. Mestrado que virou doutorado, 2 empregos diferentes, 2 filhos, X kilos a mais (e o valor de X não será revelado nesta equação, nem com regra de 3).
Outras tantas eu jamais teria passado houvera eu decidido ficar bem quietinha onde estava e hoje quando penso que fiz tudo isso só a lembrança me cansa e me pergunto, sem ter resposta, se faria isso tudo de novo. Entram aqui tradução de aproximadamente 1000 páginas das ementas de todas as minhas disciplinas da faculdade para validação na minha ordem profissional, mais outras muitas e muitas páginas de projetos e inscrições em bolsas de estudo, curso de francês normal, curso de francês para profissionais da saúde, curso de inglês como segunda língua, curso de inglês acadêmico, provas de francês para ordem profissional, provas de inglês e GRE (o pior teste de todos os testes que eu já fiz na vida). Entram nessa categoria também coisas como ter que descobrir onde fazer barra de calça (e por fazer barra de calça não deve se considerar a técnica de grampear ou colocar clips, que usei por muito tempo até achar alguém que fizesse com linha por menos de $20), onde achar material de artesanato, como se chamam determinadas comidas em francês (e que dicionário nenhum te conta), que banana se compra verde mesmo, que manga nunca vai ter gosto, mesmo que custe $3, que goiaba, Yakult, mandioca e côco ralado só se acha no mercado chinês enquanto queijo branco é no mercado árabe e creme de leite só no Wal Mart, que aqueles brinquedinhos legais se acha na rua tal, que a fulana conhece ciclano que é primo do beltrano que tem um tio que afia alicate de unha, que a aula de musicalização boa é em tal lugar (e pra isso você teve que testar os outros 5 lugares porque aqui, diferente de lá, você não nasceu sabendo quais são os bons lugares). Enfim, é uma trabalheira sem fim você ter que aprender como, onde e por que faz um monte de coisas que você nunca pensou que tivesse que pensar como se faz.
Outras mudanças são do plano cotidiano e que depois de 4 anos, de repente viraram naturais. A primeira, inspiração para este blog, é tirar o sapato. Realmente eu acho bem estranho, quase nojento hoje em dia quando vou ao Brasil e vejo o povo entrando em casa de sapato. Também já acho normal ter cômodos sem lustre de teto e que todas as tomadas de cima se apagam no interruptor do cômodo. Lavar banheiro? Pffft, é coisa do passado e não é mais estranho não ver um ralo por aí. Hoje se for encomendar pães para uma festinha nem vou pensar em pão francês, mas "bagel" e muffins são opções instantâneas. Café da manhã não tem pão com manteiga mas sim pão com peanut butter e geléia, coisa aliás que foi vítima de um grande "eca" da primeira vez que vi. Hoje eu sei perfeitamente que existe tal coisa como "casaco de primavera" e que oh céus, eles são muito diferentes dos casacos de inverno. Aliás, hoje eu sinceramente acho que 15 graus é MUITO calor, tipo, 15 graus? Tô saindo de Havaiana e regata. Ok, não é pra tanto, mas hoje estava 15 e eu saí de Melissa e blusinha de manga curta. Normal também é olhar a temperatura todo dia antes de sair de casa. Duvido que alguém aí no Brasil saiba assim na ponta da língua quantos graus fez hoje. Pois aqui o site da meteorologia está marcado como favorito e 10 entre 10 pessoas vão saber te dizer a previsão dos próximos dias. Inclusive, se você não sabe, você é uma pessoa muito desinformada (como eu, as vezes). Entrar em banco sem ter que encarar segurança armado e sem ter que deixar o celular, a chave, as moedas, a calcinha e o sutiã na gavetinha da porta também é normal.
E enquanto muitas coisas que no começo causavam estranhamento ou faziam muita falta, hoje já são normais, outras continuam sendo estranhas e fazendo falta. Empregada, por exemplo, vou morrer querendo uma e sem ter coragem de pagar. Pensando bem, essa é uma mudança, no Brasil eu não tinha a menor dó de pagar, mas aqui rola esse sentimento de que "empregada é coisa pra gente muito, muito abastada, madame fru fru e tal" - ou seja, não é pra mim. A rudeza da maioria dos vendedores (acho que ninguém aqui ganha por comissão) e muitos garços (que ganham gorjeta mas são grossos assim mesmo), todo comércio fechado as 17h, exceto na quinta-feira (que fecha as 19h ou 21h - não me pergunte o porquê) afinal eu sou paulista e sábado a noite é dia de ir em shopping e esta não é uma opção aqui. Sinto muita falta de muitas comidas, de padaria, de não ter que ir a 4 lugares diferentes para achar todos os ingredientes para fazer a receita tal.
Dizem que quando a gente sai do nosso país tudo muda e nada mais volta pro lugar. Tudo verdade. Toda vez que chego no Brasil eu acho mesmo que está tudo fora do lugar. São Paulo já não tem mais outdoors (nada a favor deles, mas é estranho), os amigos tem outros amigos que não são meus amigos, as fofocas já não me empolgam (tanto) porque não conheço metade dos nomes envolvidos, a amiga conta do último assalto, a janela do carro tem que ficar fechada, o Tietê continua sujo mas apesar das florzinhas, tudo parece mais feio. Depois de matar a saudade dos amigos, que geralmente tem que trabalhar e tocar a vida enquanto eu estou lá de férias, depois de arrastar os amigos para comer todas as 324 coisas do meu roteiro gastronômico (gorda, eu?) já estou pronta pra voltar. Embora eu continue adorando Sampa e principalmente meu irmão e meus amigos que estão lá, não lhe pertenço mais, nem ela me pertence. Por outro lado, quando volto pra cá eu quero ir embora. O frio dói, as sobremesas não tem leite condensado, meu filho fala "eu te lovo mamãe", ninguém sabe o que é "quebrar um galho" (a assistente de pesquisa do laboratório sempre se diverte com as minhas traduções "to break a sitck") ou "fazer uma vaquinha" (let's make a little cow).
4 anos, me perguntaram um dia desses qual era o balanço. Acho que é positivo, a bolsa de pesquisa que eu teria no Brasil, por exemplo, não seria nada comparada a que eu tenho aqui, eu não conheceria pessoalmente todas as pessoas importantes na minha área profissional, Poliglack não falaria Inglês e nem entenderia Francês, eu não saberia esquiar (bom, saber é relativo, mas tentar pelo menos) e nem saberia que não é qualquer neve que serve para fazer um boneco de neve. Mandei semana passada meus documentos para pedir a cidadania canadense mas toda vez que alguém me pergunta: você vai voltar pro Brasil? - Eu não tenho uma resposta. Se lá não é mais casa, tão pouco é aqui. Cidadã do mundo = cidadã de lugar nenhum?